quarta-feira, 18 de junho de 2008

CETICISMO E ÉTICA: O CETICISMO CONSTRUTOR DA PAZ SOCIAL

CETICISMO E ÉTICA: O CETICISMO CONSTRUTOR DA PAZ SOCIAL[1].

José Enéas Barreto de Vilhena Frazão[2].



Sumário: Introdução (delimitação do tema); 1 Acerca do Ceticismo em si; 2 De como o ceticismo constitui um elemento construtor da paz social e da tolerância; 3 Conclusão; Bibliografia.


RESUMO
O presente artigo tem o intuito de demonstrar de que forma o Ceticismo pode vir a se tornar uma ferramenta de construção de um sentimento de aceitação da pluralidade cultural – ideológica que se configura entre os diversos grupos humanos. De que forma o engrandecimento cultural do indivíduo pode criar um melhor relacionamento com os demais que o cercam, e de que forma uma postura cética socialmente adotada pode levar a um apaziguamento das tensões sociais entre grupos ideologicamente e culturalmente diversos.

PALAVRAS – CHAVE
Ceticismo; Pluralismo; Tolerância.

Introdução.

O presente trabalho foi desenvolvido com a intenção de estabelecer uma relação entre a adoção de uma postura cética por parte dos indivíduos, enquanto seres viventes em sociedade, e a construção de um sentimento de aceitação da pluralidade cultural e ideológica, proporcionando o estabelecimento de uma sociedade mais tranqüila e fraterna.
Tentaremos mostrar como o ceticismo pode constituir uma ferramenta sócio-cultural de apaziguamento das tensões sociais, normalmente geradas pela intolerância e pela não aceitação e entendimento do próximo, enquanto outro diferente, e em diversos aspectos único, ao qual talvez jamais se poderá compreender totalmente.
Mostraremos, portanto, de que forma a adoção de uma postura universalista, cética, pode atuar socialmente de forma a construir uma sociedade melhor, mais acolhedora, onde os indivíduos que dela fazem parte deixem de julgar ao próximo com base em suas próprias concepções, com base em suas “pré-concepções”
Portanto, este desenvolvimento se dedicará a mostrar, em resumo, de que forma uma postura cética contribuiria para o apaziguamento das tensões sociais de toda ordem.

1 Acerca do ceticismo em si.

Segundo Giorgio Del Vecchio, em sua obra Lições de Filosofia do Direito, uma atitude cética seria uma atitude de negação. Uma filosofia cética, para o autor, seria uma filosofia que pretende nos mostrar que, o conhecimento in genere seria impossível de ser obtido, e portanto, para o autor, depreende-se, uma postura cética seria uma postura de negação de verdades que visam se impor como absolutas, os conhecidos dogmas, e assim, a filosofia cética seria portanto uma filosofia de combate ao dogmatismo.
Observemos trecho de Del Vecchio em que este nos fala acerca do ceticismo, da filosofia cética:
A instabilidade e arbitrariedade do direito positivo foi o argumento favorito dos Sofistas no combate à autoridade da lei. Do mesmo se socorreu a filosofia dos cépticos quando estes pretenderam demonstrar, mais tarde, a impossibilidade do conhecimento in genere. Dos dez tropos ou argumentos que a escola céptica, fundada por Pirro, usou para aconselhar a suspensão de todo o juízo (...) um deles baseava-se precisamente nas instituições, costumes e leis discordantes entre si.[4]

A definição de Del Vecchio, que na ocasião citada se referia mais precisamente a um ceticismo jurídico, (afinal, a obra citada trata de filosofia aplicada ao direito) ao nosso ver, contribui perfeitamente para que possamos dela abstrair a idéia maior de uma filosofia cética: a negação de dogmas, a “suspensão de todo juízo acerca das coisas”, e em nosso entender, a suspensão dos “pré-conceitos”. Em um momento posterior de sua obra, Del Vecchio assume inclusive uma postura de negação do ceticismo[5], afirmando que no espírito humano, “na consciência de si mesmo, tem a prova irrecusável e peremptória de uma existência e cognoscibilidade”. No entanto, neste artigo, vale lembrar, defendemos a adoção de uma postura cética de negação de pré-concepções em vivência no seio da sociedade, no contato com o outro, com a alteridade, enquanto o eminente autor referia-se a uma postura cética absoluta, não referindo-se, como no nosso caso, a uma situação específica, a uma proposta de negação específica, e não geral.
Retomando o assunto deste trabalho, com o perdão pelo breve desvio do parágrafo anterior, quem também tem algo a nos dizer acerca do ceticismo é o excelente Miguel Reale, quando nos afirma, em sua obra Filosofia do Direito que:
Enquanto o dogmatismo afirma a possibilidade de atingir-se a verdade com certeza e sem limites a priori, o ceticismo implica em uma atitude dubidativa ou em uma provisoriedade constante, mesmo a respeito de opiniões emitidas no âmbito das relações empíricas (...) O ceticismo Nunca abandona a atitude dubidativa do espírito, mesmo quando enuncia juízos sobre algo[6]

Acreditamos já se encontrar muito bem definido o pensamento cético a este ponto. Jamais poderíamos proceder à tentativa de demonstração da relação entre a adoção de uma postura cética e o estabelecimento da tolerância em âmbito social sem compreender-se anteriormente a essência do pensamento cético, para entendermos então de fato o que significaria a “postura cética” à qual tanto nos referimos.
Por este motivo realizamos tão exaustiva definição do pensamento cético, recorrendo a dois autores para elucidar-nos o mesmo tema, e por fim, podemos então afirmar que o pensamento cético seria exatamente a não aceitação de verdades impostas, provindas de quaisquer fontes, a negação de conceitos que pretendem fazer-se absolutos.

2 De como o ceticismo constituiria elemento construtor da paz social e da tolerância.

Boaventura de Sousa Santos, em Reconhecer para libertar. Os caminhos do Cosmopolitismo Muticultural, nos coloca que;
A expressão multiculturalismo designa, originalmente, a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio das sociedades “modernas”. Rapidamente, contudo, o termo tornou-se um modo de descrever as diferentes cultural em um contexto transnacional e global.[7]

Reconhecendo esta situação de coexistência de múltiplas vertentes culturais no seio das mesmas sociedades, verifica-se que, por possuírem valores diferenciados, há uma tendência de que, em determinado momento, estes grupos entrem em choque.
Neste contexto entre culturas diferenciadas e valores diversos, o que geralmente ocorre é que os povos ou grupos sociais formam juízos acerca dos modos de vida e cultura diferentes dos seus.
O grande problema constitui-se em que, na verdade, tais juízos que são formados acerca das culturas e valores do outro, normalmente são negativos, já que os indivíduos tendem a assumir uma postura localista, etnocêntrica, que tende a julgar os seus valores como corretos e superiores, enquanto os valores que lhe são estranhos seriam ruins, inferiores.
Quem nos descreve perfeitamente o problema do etnocentrismo é Herskovits, quando diz que:
O mecanismo primário que funciona na avaliação da cultura é o etnocentrismo. Etnocentrismo é o ponto de vista segundo o qual o próprio modo de vida de alguém é preferível a todos os outros. Como dimana do processo inicial de endoculturação, esse sentimento é conatural à maior parte dos indivíduos, quer o expressem, quer não.[8]

A coexistência de múltiplas culturas e valores no seio de uma mesma sociedade, e a tendência antropocêntrica dos indivíduos, ao formar juízos acerca de outras culturas estranhas á sua, como já foi colocado, inevitavelmente leva ao conflito entre grupos, que consiste na verdade em um conflito entre culturas, ideologias, modos de vida.
Os indivíduos em si, enquanto continuarem a nutrir concepções localistas e exacerbação de seus valores e negação do outro, serão os principais responsáveis pelas tensões entre os grupos sociais e pela violência que marca os tempos modernos, quando vemos mendigos serem queimados e mortos por jovens de classe média alta, (talvez pelo simples fato de acreditarem não ser aquele a quem matavam algo mais que um animal, por de se encontrar em situação de miséria e maltrapilho), prostitutas, homossexuais, negros e latinos serem espancados por grupos de skinheads, dentre outras atrocidades geradas pela intolerância.
Exatamente neste momento encaixa-se a idéia principal deste nosso desenvolvimento, o papel da postura cética no combate à intolerância, ao localismo, ao antropocentrismo, em pró da tolerância, do respeito mútuo entre os que se enxergam diversos.
O papel da postura cética diante da sociedade plural constituiria exatamente o elemento apaziguador, levando os indivíduos a descartarem os juízos que adquiriram e que se encontram arraigados em seu ser, enraizados em sua alma, e que podem levá-lo a estabelecer juízos distorcidos acerca dos valores alheios aos seus.
Ao se deparar com a alteridade, e enxergar o outro como um indivíduo de cultura e valores inferiores, e, portanto talvez desprezíveis, estes juízos distorcidos podem levar o indivíduo a acreditar que se encontre no direito de proceder de maneira rude ou mesmo agressiva para com o outro, dando início muitas das vezes a tensões, que dos indivíduos, estendem-se para seus grupos, que também acabam por ser sentir ofendidos com a atitude desrespeitosa, gerando situações conflituosas de grandes proporções.
Somente uma postura cética com relação ao outro e aos seus valores pode encaminhar as sociedades a uma situação de paz e de cessação dos conflitos, e para tal, a suspensão dos juízos “pré-estabelecidos” é imprescindível, de forma que tal atitude possibilita ao indivíduo enxergar o outro de forma imparcial, não tendenciosa, e antes de tudo respeitosa, mesmo não compreendendo seus valores ou crenças, ou mesmo suas atitudes ou maneira de ser, já que, a busca incessante pelo correto ou errado, pelo bem ou mal, pode gerar uma pertubabilidade que ocasione (segundo os céticos) a infelicidade. Tal busca consistiria, ao nosso ver, em sempre procurar enquadrar o outro em uma categoria sócio-cultural inferior, para que, em comparação à sua própria, esta pareça superior, portanto boa.
João Maurício Adeodato, no décimo capítulo de sua ética e Retórica, nos fala acerca da Ataraxia, a imperturbabilidade proporcionada pela adoção de uma postura cética:
Ataraxia é essa tranqüilidade que não se perturba, a imperturbabilidade. O termo vem de taraché, a perturbação causada pela busca incessante do bem e do mal, dentre outros, porque toda perturbação traz infelicidade.[9]

Pois então, podemos depreender do texto de Adeodato que, uma postura cética socialmente adotada propiciará não somente uma situação de tolerância social, como foi defendido ao longo de todo este trabalho, que seria saudável a todos os indivíduos, como também uma imperturbabilidade por parte do indivíduo que a dota, tornando-o alguém mais tranqüilo, e, portanto, mais feliz.

Conclusão.

Por fim, resumindo tudo o que foi aqui colocado, pode-se afirmar que, a postura cética que defendemos ao longo destas páginas, não constitui uma negação generalizada aos moldes de um ceticismo dogmático[10], constituindo tão somente a suspensão dos juízos acerca do próximo, em favor da paz social, e de nossa própria paz interior, sendo tal ceticismo, acima de tudo, um eficaz instrumento de pacificação de conflitos e de manutenção da fraternidade entre os indivíduos, entre os grupos e tribos, e entre os povos, em uma esfera mais abrangente.

SKEPTICISM AND ETHICS: THE CONSTRUCTOR SKEPTICISM OF THE SOCIAL PEACE.


SUMMARY
The present article has the intention to demonstrate in witch ways the skepticism can turn into a construction tool of a feeling of acceptance of the cultural-ideological plurality that happens in the human groups, stil treating about whow can the cultural improvement of the individual can contribute to calm down the social tensions between the ideological and cultural devergent groups.

KEY – WORDS
Skepticism; Pluralism; Tolerance.

BIBLIOGRAFIA.

ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica. Saraiva. 3ª Edição. 2007.
HERSKOVITS, M. J. Antropologia Cultural .São Paulo. Mestre Jou editora. 1969.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. Editora Saraiva. 7ª Edição. São Paulo. 1975.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. Editora Saraiva. 9ª Edição. São Paulo. 1982.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar. Os caminhos do Cosmopolitismo Muticultural. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 2003.
VECCHIO. Giorgio Del. Lições de Filosofia do Direito (Lezioni di Filosofia Del Diritto). Armênio Amado Editor, Sucessor. Ceira – Coimbra – Portugal. 1979.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR.

GUSMÃO. Paulo Durado de. Filosofia do Direito. Editora Forense. Rio de Janeiro. 1998.
MONCADA, L. Cabral de. Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra Editora. 1995.


Notas:

[1] Trabalho desenvolvido para obtenção de nota relativa à disciplina Filosofia do Direito, ministrada pelo professor Isaac Reis. Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Curso de Direito.
[2] Aluno do segundo período do Curso de direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco UNDB.
[3] Aluno do segundo período do Curso de direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco UNDB.


[4] VECCHIO. Giorgio Del. Lições de Filosofia do Direito (Lezioni di Filosofia Del Diritto). Armênio Amado Editor, Sucessor. Ceira – Coimbra – Portugal. 1979. Pg. 332.
[5] Comentário somente a título de informação complementar.
[6] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. Editora Saraiva. 9° Edição. São Paulo. 1982. Pg. 162.
[7] SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar. Os caminhos do Cosmopolitismo Muticultural. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 2003. Pg.26.
[8] HERSKOVITS, M. J. Antropologia Cultural .São Paulo. Mestre Jou editora. 1969. Pg. 90.
[9] ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica. Saraiva. 3ª Edição. 2007. Pg.339
[10] Idem, cit. 8

ANÁLISE E CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO DE 1891

CONSTITUIÇÃO DE 1891 – ANÁLISE E CRÍTICA.[1]

José Enéas Barreto de Vilhena Frazão.



RESUMO – O presente trabalho tem a finalidade de fazer um apanhado geral acerca da constituição de 1891, classificando-a, tomando por base as categorias expostas por Paulo Bonavides em sua obra, e ainda explanando acerca das principais mudanças que esta veio a ocasionar na sociedade brasileira com seu advento. A relevância deste trabalho se encontra na análise de uma das constituições mais importantes historicamente de nosso país, dadas as repercussões que gerou nesta nação.

SUMÁRIO – 01 – Introdução (Contextualização Histórica); 02 – Legitimação do Poder; 03 - Classificação da constituição de 1891 segundo as categorias expostas por Paulo Bonavides; 04 – Lassale X Hesse. 05 – Conclusão (Crítica e Finalizações).

INTRODUÇÃO
Contextualização Histórica

A constituição brasileira de 1891 é tida como uma das mais relevantes quanto ao papel histórico que desempenhou e devido às mudanças que acarretou na sociedade brasileira de fins do Séc XIX. Sua elaboração teve início no ano de 1890, sendo promulgada em 24 de fevereiro de 1891, após um ano de negociações com os poderes que realmente comandavam o Brasil, vigorando durante todo o período histórico conhecido como república velha, e sofrendo ao longo de toda a sua vigência apenas uma única modificação, em 1927. Seus principais autores, ou pelo menos os mais notáveis, foram Prudente de Morais e Rui Barbosa, este primeiro, à época, era presidente do congresso e senador por São Paulo, no entanto, houve dezenas de outros colaboradores, todos citados ao final da carta constitucional, que produziram os seus cerca de 100 artigos.
A constituição de 1891 foi fortemente inspirada na constituição previamente adotada pelos Estados Unidos da América, e uma de suas principais características era a forte descentralização dos poderes, dando grande autonomia aos municípios e às antigas províncias, que passaram a ser denominadas “estados”, e o seus “governadores” que passaram a ser denominados “presidentes de estado”. Outro aspecto em comum com a constituição norte-americana foi o modelo federalista, permitindo que os estados se organizassem de acordo com os seus interesses peculiares, desde que estes não contradissessem a constituição.
Outra marcante característica que deveras marcante foi à história deste país, foi a celebração da existência dos três poderes, a saber, executivo, legislativo e judiciário, pondo um fim ao antigo poder moderador, desempenhado pelo imperador, e que subjugava estes outros três, ceifando-lhes a autonomia. Os membros dos poderes executivo e legislativo passaram a ser eleitos pelo voto popular direto, e portanto, eram os representantes do povo no regime democrático representativo adotado com o advento desta constituição, já citado em seu artigo primeiro.
O regime de governo adotado então foi o presidencialista, e o presidente seria eleito pelo voto direto para exercer um mandato que se prolongaria por não mais que quatro anos, e não havia o direito de se reeleger para o mandado seguinte, contudo, não haviam impedimentos para candidatura visando mandatos posteriores. Diferentemente do que hoje ocorre, o vice – presidente era eleito independentemente do presidente da república, e por vezes, ocorria de ser eleito um vice da oposição, o que dificultava por demais o exercer do poder, e, além disso, em caso de morte do presidente, seu vice assumia somente até que se fossem feitas novas eleições, não tendo de exercer a presidência até que se completasse o quadriênio.
Quanto ao voto continuava a ser não-secreto, às claras, já que o eleitor assinava a cédula eleitoral, obrigatoriamente. Um avanço neste quesito diz respeito ao fim do voto censitário, ou seja, aquele que definia o eleitor por sua renda, mantendo, no entanto, excluídos ainda as mulheres, os religiosos sujeitos a obediência eclesiástica, os analfabetos e os mendigos.
Definiu-se a separação entre igreja e estado. Outro marco histórico a ser levado em consideração nesta análise. Durante o período anterior, muitas funções que hoje são desempenhadas pelo estado ficavam a cargo da igreja católica, como eram os registros de casamento, nascimento e óbito, o ensino, e mesmo os cemitérios onde somente jaziam os pertencentes a esta religião que era a adotada oficialmente na época. O estado, por sua vez, também passou a não mais interferir na igreja, já que antes este escolhia os membros do alto clero. As paróquias deixaram de desempenhar funções administrativas, já que antes poderiam equivaler a um município, vila ou comarca. O país, portanto, não mais teve a religião católica como oficial, em proveito da liberdade de credo livre do povo. O estado passou a disponibilizar tais serviços como ensino e registros em cartório sem qualquer intervenção religiosa, e neste período, surgiram também os cemitérios públicos, onde todos, independente de crença, poderiam ser enterrados.
De igual importância histórica foi o fim da nobreza e de quaisquer privilégios que esta poderia acarretar. Alguns poucos manteriam seus títulos apenas por questão de respeito ou cortesia, mas tais títulos já não possuíam valor nenhum. Vale ressaltar que o brasileiro que viesse a aceitar algum título de nobreza estrangeiro perderia seus direitos políticos.
A constituição brasileira de 1891 foi redigida à semelhança da norte–americana, levando em consideração seus princípios republicanos, embora os princípios liberais e democráticos em grande parte tivessem sido suprimidos pelos interesses das classes dominantes, já que as oligarquias latifundiárias, por meio de seus representantes, tiveram grande influência no desenvolver desta constituição, daí surgindo o federalismo, que era anseio dos cafeicultores paulistas para que aumentasse a descentralização do poder e dessa forma se fortalecesse as oligarquias regionais. A influência paulista também é notável, já que na época os paulistas detinham quase 1/6 do produto interno bruto nacional. Tal influência oligárquica na constituição de 1891 será mais detalhadamente debatida posteriormente, já que constitui o ápice da crítica que objetivamos nós produzir.

02 – LEGITIMAÇÃO DO PODER.

Procederemos então, a análise da legitimação do poder referente à constituição de 1891. Levados por uma análise do preâmbulo constitucional poderia se afirmar que a legitimação do poder provém da vontade do povo, porém não convém deixar-se levar pelas impressões iniciais.
Como será mais possível verificar em momento posterior neste trabalho, historicamente, sabe-se que as vontades das oligarquias foram de considerável influencia durante o processo de formulação do texto desta constituição. Portanto, põe-se em questão a legitimidade desta constituição, não tendo partido única e exclusivamente da vontade soberana do povo, e sim dos anseios da classe oligárquica.
Prefere-se deixar o aspecto crítico para o final deste trabalho, de forma que este possa ser tratado com maior especificidade, e assim, melhor explicitado.
Não pode se afirmar legítimo o poder que impõe essa constituição já que esta visa a satisfação de uma única classe, mascarando-se em um aspecto popular.
Enfim, o poder que impõe a constituição de 1891 não é legitimo,pode-se afirmar superficialmente neste momento,não é legítimo, é pseudo-popular, pois representa na verdade as vontades das oligarquias da época, quando deveria estar de acordo com os anseios populares.

03 – CLASSIFICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1891 SEGUNDO AS CATEGORIAS EXPOSTAS POR PAULO BONAVIDES.

A partir deste momento formular-se-á uma análise que vise classificar a constituição de 1891 tendo por base as categorias expostas por Paulo Bonavides. Segundo o eminente autor, as constituições podem se apresentar sob aspectos formais ou materiais, podendo ser rígidas ou flexíveis, escritas ou costumeiras, codificadas ou legais, promulgadas, pactuadas ou populares, e por fim, concisas ou prolixas.
UMA CONSTITUIÇÃO MATERIAL – A constituição brasileira de 1891é uma carta que se apresenta sob o aspecto material, porque se restringe a tratar de assuntos essencialmente constitucionais. Paulo Bonavides coloca-nos que “do ponto de vista material, constituição é o conjunto de normas pertinente á organização do poder, à distribuição de competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais quanto sociais. Tudo quanto for enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento da ordem política exprime o aspecto material da constituição”. (BONAVIDES. Pg80. 2008).
O aspecto material sob o qual se apresenta a constituição de 1891 se torna perceptível ao procedermos à análise de seu texto, que dispõe acerca da organização federal, dos direitos individuais (estes presentes na seção II do título IV) além de algumas disposições gerais e transitórias.
Portanto, por conter somente disposições acerca da organização estatal e direitos individuais, chega-se à conclusão que esta constituição se apresenta sob aspecto MATERIAL. Não contém assuntos que não sejam ESSENCIALMENTE CONSTITUCIONAIS ou de relevância constitucional. Não há enxertos de matérias não – constitucionais.
UMA CONSTITUIÇÃO RÍGIDA – Quanto à rigidez, tal constituição se apresenta como uma constituição rígida. Segundo Bonavides, constituições rígidas são “as que não podem ser modificadas da mesma forma que as leis ordinárias. Demandam um processo de reforma mais complicado e solene” ( BONAVIDES. Apud DIRCEY. Pg. 83. 2008).
O artigo 90 e seus parágrafos dispõem acerca do método de reforma empregado na constituição de 1891, portanto, esta não poderia sofrer qualquer modificação senão da forma como disposto no Art. 90. A constituição de 1891 não poderia ser reformada de maneira ordinária, como o são as constituições classificáveis como flexíveis. A constituição de 1892 sofreu apenas uma única reforma em 1927.
UMA CONSTITUIÇÃO ESCRITA – A constituição de 1891 era uma constituição escrita, pois constava em um documento formal[2].
UMA CONSTITUIÇÃO CODIFICADA – Quanto a integridade de seu corpo, a constituição de 1891, é classificável como uma constituição codificada. Constituições codificadas são aquelas que se apresentam todas contidas em um único texto íntegro. Paulo Bonavides classifica as constituições escritas de duas maneiras, como codificadas, da forma já descrita, e como legais “que se encontram esparsas ou fragmentadas em vários textos” (BONAVIDES. Pg. 88. 2008).
UMA CONSTITUIÇÃO “POPULAR” – Quanto à forma de sua adoção, as constituições podem ser outorgadas, pactuadas ou populares.[3] Como foi dito no tópico segundo (Legitimação do Poder), verifica-se que a constituição de 1981 seria classificável como popular, no entanto, a análise histórica não nos permite classificá-la desta forma.
Sabe-se que tiveram grande influência das oligarquias na elaboração da constituição de 1981, por meio de seus representantes, para que fossem garantidos os seus anseios, e um deles foi exatamente o federalismo, que garantiu maior autonomia e ampliação dos poderes das oligarquias regionais.
Portanto, uma constituição formulada para garantir os anseios de alguns, jamais poderia ser considerada como “popular”, caracterizaríamos então esta como uma constituição oligárquica, ou seja, manchada em sua essência pelos interesses de apenas uma parte da população, quando deveria abranger os interesses de toda a nação.
UMA CONSTITUIÇÃO CONCISA – Quanto à extensão as constituições podem ser concisas ou prolixas. As primeiras são as que se apresentam curtas, resumidas e objetivas, as segundas são as que se apresentam extensas, por tratar muitas vezes de assuntos não essencialmente constitucionais[4].
A constituição de 1891 é de fato concisa, por ser objetiva, de pequena extensão, contando apenas com 91 artigos, e mais 8 artigos em disposições transitórias.

04 – LASSALLE X HESSE.

Esta parcela de nosso desenvolvimento dedica-se às concepções de Ferdinand, Lassalle e Konrad Hesse, a saber, antagônicas, acerca da constituição.
Em um breve apanhado de suas teorias, temos que Lassalle colocáva-nos que a constituição são os fatores reais de poder, ou seja, os fatores que realmente exercem influência na sociedade, como o poder bélico dos exércitos, as vontades do monarca ou das oligarquias, o poder dos banqueiros, dentre outros, enquanto Hesse afirma que a constitução, por sua força normativa, teria o poder de opor-se à sociedade, adaptando-a aos seus princípios. Em Lassalle, as constituições que não correspondessem aos fatores reais de poder não passariam de folhas de papel, já que não lograriam observância / efetividade no sei da sociedade.
É possivel associar as ideias de Lassalle, acerca dos fatores reais de poder à Constituição de 1891, já que confirma-se as teorias deste quando observamos a influência tamanha das oligarquias, e seus intentos, eram fatores reais de poder na sociedade brasileira do século XIX, e de fato influenciram na elaboração desta constituição para que ela correspondesse às suas vontades e anseios.
CONCLUSÃO.
Crítica e Considerações Finais[5].

Detecta-se que a mais pertinente crítica a ser feita à constituição da república velha, diz respeito à sua origem, que poderia teoricamente classificá-la como uma constituição popular, já que foi a primeira constituição de caráter liberal de nossa história política, inspirada nos preceitos adotados pela carta estadunidense, e, no entanto, pela análise e comentários já aqui colocados, chega-se à conclusão de que na verdade, não o foi desta forma, não podendo ser considerada uma constituição realmente popular.
Já foi colocado que os interesses das oligarquias foram determinantes e de enorme influência, por meio de seus representantes, na elaboração da constituição em questão, e a própria adoção de um regime federativo, que concede autonomia aos estados, lhes foi uma “mão na roda”, por assim dizer, estando perfeitamente de acordo com os seus interesses, que envolviam a ampliação das influências oligárquicas nas localidades em que se situavam.
Portanto, jamais poderia-se afirmar o caráter popular de uma constituição contaminada por interesses oligárquicos que nela se infiltraram de tal forma, a influenciar inclusive no regime de governo a ser adotado. Percebemos que neste momento histórico de nosso país, a influência das oligarquias era ainda considerável, e ainda o é nos dias de hoje, afinal, como percebemos nos jornais impressos ou televisionados, os que elegemos para nos representarem e aos nossos anseios, na verdade se encontram e busca de suas próprias satisfações e proveitos.
Não se pode classificar a constituição de 1891 como popular exatamente por este motivo. Esta, não era uma carta de representação dos anseios populares, mas sim, das vontades de poucos, dos grupos oligárquicos, e tal colocação nos leva a ponderar se realmente houve avanços neste sentido até os tempos em que vivemos. Parece-nos que os interesses vigentes continuam sendo os das minorias, e não do povo em geral, por mais que os preâmbulos constitucionais tentem celebrar a vontade do povo como soberana. E esta, é a nossa crítica à mencionada constituição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

BONAVIDES, Paulo; Curso de Direito Constitucional; São Paulo; Malheiros Editores. 22ª edição. 2008.
LOPES, J.R. L et al. Curso de História do Direito. São Paulo. Método. 2006.
HESSE, Konrad. Die Normative Kraft de Verfassung (A força normativa da constituição: Tradução de Gilmar Ferreira Mendes); Sergio Antonio Fabris Editor; Porto Alegre. 1991.LASSALE,Ferdinand; A essência da Constituição; Lumem Júris, Rio de Janeiro, 1998

Notas:
[1] Trabalho apresentado por alunos da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB, para obtenção de nota referente à disciplina “Teoria do Direito Constitucional”. O presente trabalho foi formulado com o intuito de caracterizar a constituição brasileira de 1891 quanto às suas características e as transformações que provocou na sociedade brasileira à época.
[2] Em Bonavides, as constituições recebem classificação como sendo costumeiras ou escritas. Estas últimas, o autor coloca como sendo fruto das lutas inglesas que redundaram no triunfo parlamentar, e, por outra parte, o produto doutrinário do contrato social de Rousseau, que levou à crença de que era mais adequado concretizar em um pacto ou contrato as normas de convivência entre governantes e governados. (BONAVIDES.Pg.85.2008).
[3] Paulo Bonavides, quando às formas de adoção das constituições, diz que estas podem ser outorgadas, pactuadas, ou populares.(BONAVIDES. Pg.89.2008) Constituições outorgadas são as que surgem do consentimento do rei, príncipe ou chefe de estado, em desfazer-se de uma parcela de suas prerrogativas em proveito do povo. É ato unilateral de uma vontade política soberana. A constituição pactuada é aquela que surge de um compromisso instável entre duas classes rivais, a saber, a realeza absoluta, já debilitada, e a aristocracia juntamente com a burguesia, ambas em ascensão, surgindo assim a forma institucional da monarquia limitada. E por último as constituições populares, são aquelas que surgem do princípio de que todo governo deve aparar-se no consentimento dos governados e traduzir a vontade soberana do povo, ou seja, tais constituições populares, são as que realmente surgem a partir da vontade soberana da nação como um todo, e não somente de uma parcela desta.
[4] Por este motivo pode-se associar as constituições prolixas com aquelas que se apresentam sob aspecto formal, por tratarem na maior parte das vezes de assuntos que normalmente não abrangeriam, ou não necessariamente deveriam ser matéria constitucional, daí a sua grande extensão, por englobar assuntos que normalmente lhe seriam ou deveriam ser alheios.
[5] Então, por fim, trata-se da crítica á constituição de 1891 neste tópico de conclusão, onde, ao nosso ver, haveria maior espaço para evidenciarmos a crítica feita ao caráter falsamente popular sob o qual se apresenta este texto constitucional que nos foi proposto para análise. Pode-se afirmar que, o que dispõe o preâmbulo constitucional não passa de uma tentativa de “mascarar” o seu verdadeiro caráter oligárquico.

A INFLUÊNCIA DO POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO NO CARÁTER SELETIVO DO SISTEMA PENAL E O SEU REFLEXO NA POPULAÇÃO CARCERÁRIA MARANHENSE.

A INFLUÊNCIA DO POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO NO CARÁTER SELETIVO DO SISTEMA PENAL E O SEU REFLEXO NA POPULAÇÃO CARCERÁRIA MARANHENSE[1]

José Enéas Barreto de Vilhena Frazão[2].

Sumário: Introdução (delimitação do tema); 1 Acerca do caráter seletivo do sistema penal, e a influência do positivismo criminológico na seleção e estigmatização; 2 O reflexo do caráter seletivo do sistema penal brasileiro na população carcerária maranhense 2.1 Constatações de nossa pesquisa de campo no Centro de Reeducação de Mulheres Apenadas – CRISMA; 3 Conclusão. Bibliografia.

RESUMO
O presente artigo visa demonstrar os efeitos da seletividade do sistema penal brasileiro na população carcerária maranhense, fazendo desta um espelho de seu caráter seletivo, por meio de dados estatísticos obtidos em nossas pesquisas de campo realizadas no Centro de reeducação e inclusão social de mulheres apenadas - CRISMA, e pelos dados obtidos por meio da InfoPen - Sistema integrado de informações penitenciárias, ressaltando ainda, a influência do pensamento positivista criminológico no funcionamento seletivo do sistema penal.

PALAVRAS – CHAVE
Seletividade Penal; Sistema carcerário maranhense; Perfil sócio-econômico penitenciário.

Introdução.

Desde o primeiro momento no qual nos foi apresentado o tema “seletividade do sistema penal brasileiro”, brotou o interesse por de fato vivenciar a situação dos cárceres para poder verificar tal seletividade em um além das páginas dos livros, e, este artigo, é a compilação de nossas conclusões e dos dados de nossas pesquisas de campo acerca do tema.
Como é de conhecimento geral à população maranhense, com a inauguração do novo centro de detenção provisória (CDP) de Pedrinhas, no dia 22 de Abril de 2008, todos os presos alojados em delegacias da polícia civil foram transferidos para o novo “cadeião”, não restando portanto, nenhum indivíduo do sexo masculino encerrado em delegacias.
No entanto, restaram ainda duas unidades abrigando mulheres em cumprimento de pena, uma delas, o Centro de Reeducação e Inclusão Social de Mulheres Apenadas – CRISMA[3], foi o nosso local de pesquisa eleito, onde entrevistamos determinada parcela (vinte indivíduos) das que ali se encontravam, com o intento de traçar um perfil sócio-econômico do grupo[4]. Pode parecer que um número tão reduzido de indivíduos (já que mulheres são minoria na população carcerária) não possa nos proporcionar uma visão, abrangente, da seletividade do sistema penal, o que constitui na verdade um grave engano, já que mesmo neste subgrupo reduzido a seletividade mostrou-se intensa.
Ainda, para uma visão mais abrangente de tal situação de seletividade penal refletida na população carcerária maranhense, realizou-se uma análise dos dados penitenciários maranhenses divulgados pelo InfoPen – Sistema integrado de informações penitenciárias, que sem dúvida revelou o que já era aguardado: uma situação absurda de discriminação social resultante em uma população penitenciária composta em sua maior parte por negros ou pardos, de baixa renda e baixa escolaridade, o mesmo que demonstrou nossa pesquisa mais específica com as mulheres em cumprimento de pena.

1 A influência do positivismo criminológico na seleção e estigmatização.

Podemos afirmar, com Alessandro Baratta, em seu livro Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal acerca das escolas positivistas de criminologia que:
A novidade de sua maneira de enfrentar o problema da criminalidade e da resposta penal a esta era construída pela pretensa possibilidade de individualizar sinais antropológicos da criminalidade e de observar os indivíduos assim assinalados, em zonas rigidamente circunscritas dentro do âmbito do universo social[5]

Baratta coloca ainda que, com as escolas positivistas, temos o débito relativo ao fato de terem criado a nova disciplina por nós conhecida como Criminologia, e a esta, em seu estágio inicial, atrelada ao positivismo, teria por função específica, a de individualizar as causas que seriam determinantes à conduta criminosa.
A criminologia positivista, portanto, marco inicial da disciplina criminológica seria caracterizada por teorias baseadas nas características físicas, na morfologia do indivíduo, além de suas peculiaridades psicológicas, formulando portanto, teorias patológicas da criminalidade.
Um dos principais expoentes da escola criminológica positivista, sem qualquer dúvida, foi o médico e cientista italiano Cesare Lombroso (1835-1909), que buscou associar as características individuais com a potencialidade criminosa. Em suas pesquisas, comparou desde os crânios de criminosos com os de “homens e mulheres de bem”, a presença de tatuagens em criminosos, a sensibilidade afetiva, o uso de gírias na fala, a religiosidade dos criminosos (constatou que nem todos eram ateus) dentre outros fatores analisados que seriam determinantes à prática de crimes. Selecionamos um trecho de seu livro O Homem Delinqüente , no qual este trata da tatuagem, associando o hábito de tatuar-se com a potencialidade criminosa:
A estatística nos deu um máximo de 40%, e um mínimo de 6%, nada melhor para provar como o hábito está difundido entre os criminosos, mesmo em comparação ao exercício onde é sobretudo observado [...] Com efeito, 4 dentre 162 delinqüentes testemunharam em suas tatuagens espírito violento, vingador, levado a atos desesperados [6]

Pode-se notar também concepções positivistas com relação à criminologia na obra do magnífico jurista cearense Clóvis Beviláqua, que, em Criminologia e Direito, procurou estabelecer uma “distribuição geográphica” dos crimes, além de uma relação entre o crime e o tempo, assim como entre o crime e a população, como dizia o próprio Beviláqua “Se é vantajoso e interessante acompanhar a marcha do crime através dos tempos, não é menos certamente conhecer como ele se adapta ao meio e como se distribui pelo território de um país dado”.[7]
Ainda como exemplo de positivista criminal temos Enrico Ferri, que afirmava a influência do meio em que se encontrava inserido o criminoso na construção de sua personalidade criminosa. FERRI, dividiu os criminosos em cinco categorias; os criminosos natos (aos moldes da teoria de Lombroso), os loucos (deficientes mentais), os criminosos habituais, os ocasionais, e os passionais (que seriam homens honestos de temperamento “nervoso”).[8]
Com esta visão geral do positivismo criminológico, percebemos o quanto estas teorias poderiam ser nocivas, perigosas, como nos coloca o especialista em teoria e pesquisa antropológica, Roque de Barros Laraia:
O preço destes tipos de explicações é que facilmente associam-se com tipos de discriminações raciais e sociais. Assim, até mesmo o sucesso empresarial passa a ser explicado como uma forma de determinação genética e é ilustrado com a enumeração da diferentes dinastias industriais ou empresariais.[9]

A tentativa de associação de características do indivíduo com a sua capacidade para o cometimento de crimes,(ou outras capacidades) como nos coloca Laraia é de fato perigosa, por facilmente se associar a discriminações raciais e sociais, acabando por se incorporar ao senso comum, o que leva a sociedade a voltar-se contra os indivíduos que correspondem às imagens que povoam nossos pesadelos, (Homens maltrapilhos, miseráveis, maldosos, assassinos, cadavéricos) ou seja, indivíduos estereotipados aos moldes da teoria do etiquetamento de Howard Becker, contribuindo ainda para a construção do discurso oficial do direito penal, da ideologia da defesa social, marcante na obra de Aníbal Bruno, jurista brasileiro, médico e filósofo, que em Perigosidade Criminal e Medidas de Segurança, afirmava; “As realidades centrais da ciência criminal moderna (a seu tempo, vale lembrar) são o homem perigoso que ameaça e que fere e a sociedade que se defende”[10]
Percebem os senhores a influência tamanha das teorias positivistas no senso comum e na construção de um “modelo” de homem (o criminoso) que deve ser temido e socialmente combatido? Sabendo que o sistema penal é operado por indivíduos inseridos nestas sociedades segregadores e visivelmente influenciadas por tais teorias às quais nos referimos, fica óbvia a origem sócio-cultural da seletividade penal. O sistema assim opera pelas influências dos pensamentos e teorias criminológicas positivistas no pensar, e portanto no agir, dos seus operadores. Por este motivo, como poderemos perceber logo em breve, há bem mais negros, homens e miseráveis povoando as celas das nossas unidades penitenciárias.

2 O reflexo do caráter seletivo do sistema penal brasileiro na população carcerária maranhense.

A partir deste momento, nosso desenvolvimento finalmente chega a um novo estágio. Explicitaremos agora, o reflexo de tudo que já foi dito, o reflexo do caráter seletivo do sistema penal, a nosso ver, ocasionado pelas influências do pensamento criminológico positivista no senso comum, já consolidadas no seio da sociedade. Para tal, tomaremos por base a população carcerária maranhense como um todo, em um primeiro momento, e em seguida um grupo específico de mulheres apenadas, ao qual pessoalmente perquirimos acerca de suas situações sócio-econômicas, sendo o objeto principal de nossas pesquisas.
Passemos então, à análise dos dados publicados pelo InfoPen – Sistema Integrado de Informações Penitenciárias.
Segundo tais informações, a quantidade de presos em delegacias (anteriormente à transferência para o novo CDP) no estado do Maranhão seria de 2438, sendo que destes, somente 81 seriam do sexo feminino, e da mesma forma ocorre no sistema penitenciário, onde dos 3207 presos, somente 111 seriam mulheres, o que nos leva à conclusão absolutamente lógica de que o sistema opera de forma seletiva a reter bem mais homens que mulheres, o que seria resultado, a nosso ver, de uma influencia do senso comum, que “etiquetaria” o homem negro e miserável como potencial cometedor de delitos.
Outra constatação a que nos levaram os dados analisados foi a superlotação dos presídios e cadeias, (mais uma vez lembrando que os dados são relativos a momento anterior à inauguração do CDP) já que na polícia há somente 471 vagas, e estas abrigavam, como já foi dito, 2438 indivíduos, entre homens e mulheres, enquanto o sistema penitenciário tem somente 1723 vagas para os seus 3207 detentos, até fevereiro de 2008, quando as vagas de certo aumentaram pela construção do CDP de Pedrinhas.
Quanto ao perfil sócio-econômico do detento no Maranhão, (espelho, sem dúvida, da situação nacional) percebe-se que o número de indivíduos com nível superior detido é simplesmente insignificante, (somente três homens e nenhuma mulher) havendo uma esmagadora maioria de analfabetos ou indivíduos sem sequer o ensino médio completo. Percebe-se aqui uma verdadeira “imunidade penal” de indivíduos que chegaram a ao menos sentar nos bancos de uma universidade, o que é espantoso, e confirma desde já nossas expectativas iniciais.
Percebe-se ainda que a quantidade de detentos de cor de pele negra (1014) e parda (1549) supera e muito a quantidade de brancos (610), sendo que há somente 28 indígenas detidos.

2.1 Constatações de nossa pesquisa de campo no Centro de Reeducação de Mulheres Apenadas – CRISMA.

Constata-se o mesmo com a análise dos dados provenientes de nossa pesquisa de campo, quando visitamos o Centro de Reeducação de Mulheres Apenadas – CRISMA.
Das 20 mulheres que entrevistamos, 13 tinham idade entre 18 e 35 anos (65%), o que denota uma ligeira maioria de mulheres relativamente jovens com relação às mais maduras. 17 delas tinham ao menos um único filho (85%), e 14 não eram casadas (70%). Dezesseis eram negras ou pardas (80%), o que demonstra mais do que nunca a descarada seletividade da atuação penal em selecionar indivíduos estigmatizados. Dentre as entrevistadas, 11 (55%) afirmaram não ter condições de pagar um advogado (contando com algumas visivelmente transtornadas, que possivelmente mentiram neste quesito – uma delas sequer conseguia expressar-se devido a uma notável deficiência mental – outra agia de forma a gabar-se, chegou a afirmar que ganhava 120 salários mínimos por mês – o que nos leva à conclusão de que menos na metade delas poderia efetivamente pagar um advogado). Outra informação de altíssima relevância é a que segue : todas as entrevistadas não possuíam emprego antes de serem presas ou ganhavam um salário mínimo ou menos em subempregos, o que nos demonstra que um dos grandes fatores que levam ao cometimento de crimes é de fato a desigualdade social, a miséria e a pobreza, e jamais, por assim dizer, a morfologia individual ou o meio, como nos afirmavam os positivistas. E nesta esteira, também pela pobreza e pela miséria, verificamos que das 20 mulheres entrevistadas, 14 (70%) lá estavam por terem incorrido na conduta prevista pelo Art. 33 da Lei de Drogas, ou seja, tráfico, que, a nosso ver, denota uma tentativa de obtenção de renda fora da esfera da legalidade, já que para estas mulheres talvez não houvesse outra alternativa para suprir as suas necessidades básicas e as de suas famílias, lembrando que, como já dissemos, 85% delas tinham ao menos um filho. Fora estas, 3 (15%) haviam cometido homicídios, e uma delas (5%) havia cometido uma tentativa de furto.
Podemos afirmar que, certamente, há ambientes penitenciários bem piores que este que visitamos, o CRISMA, no entanto, ainda assim, o que percebemos ao adentrar os portões desta unidade foi a clara degradação das condições às quais são submetidas estas mulheres: ambiente extremamente úmido e de pouquíssima luminosidade, sujo, varais que cruzavam as celas de ponta a ponta, pouquíssimo espaço para circulação e banheiros imundos, o que nos leva a pensar nas conseqüências resultantes dessas condições à saúde física e mental destas, e após alguma reflexão, verifica-se que não há outra alternativa além de concordar com Louk Hulsman em Penas Perdidas , quando este afirma que “O sistema penal é especificamente concebido para fazer o mal”[11], afinal, não há absolutamente nenhum proveito social em submeter seres humanos a condições tão degradantes quanto as que tivemos a chance de presenciar nesta vista ao “Centro de Reeducação e Inclusão Social de Mulheres Apenadas”, (note-se a declarada função social no próprio nome da unidade)[12] e além, pode-se prever que, quando forem lançadas novamente à sociedade, estas mulheres que entrevistamos provavelmente tornarão a incorrer nas mesmas condutas – não houve reeducação ou inclusão social – e assim, reproduz-se o ciclo infindável da violência, ao qual o sistema penal não se encontra apto a combater. O sistema penal que deveria “proteger” estas mulheres, na verdade as massacra ainda mais, como se não fosse bastante o seu histórico de miséria e exclusão social, marcando-as para sempre, e como bem nos coloca Vera Andrade em seu Sistema Penal Máximo X Cidadania Mínima:
O sistema penal é ineficaz para proteger as mulheres contra a violência porque, entre outros argumentos, não previne novas violências, não escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão da própria violência sexual e gestão do conflito ou muito menos para a transformação das relações de gênero[13]

Do que se pode concluir que, além de reduzir ao nada a dignidade destas mulheres, o sistema penal somente contribuiu para a maximização do sofrimento pelo qual estas já vinham passando ao longo de suas vidas. Não cumpriu a função prometida, não gerou mudança social e nem adequou estas mulheres a um convívio normal. Além das violências que possivelmente sofreram, ainda padeceram nas garras de um sistema violento e tristemente ineficaz.

3 Conclusão.

Conclui-se este trabalho com a seguinte constatação: a população carcerária maranhense de fato reflete a situação geral de nosso país quando se fala em seletividade do sistema penal. Neste, e em nosso estado, o que temos, é o claro retrato da estigmatização de indivíduos selecionados pelo sistema, a tradicional clientela penal, as minorias e classes inferiores, e que tal estigmatização ainda ocorre devido às influências das teorias positivistas já a muito academicamente superadas, mas que se encontram enraizadas no seio da sociedade e no povo. Tais concepções necessitam ser ceifadas com urgência, caso contrário a situação aqui exposta se prolongará indefinidamente, massacrando e estigmatizando fortemente os indivíduos pegos pela malha penal.


BIBLIOGRAFIA.

ANDRADE. Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo X Cidadania Mínima. Códigos da Violência na Era da Globalização. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre. 2003
BARATTA. Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal .Introdução à Sociologia do Direito Penal. Editora Revan. Instituto Carioca de Criminologia. 3ª Edição. Rio de Janeiro. 2007.
BEVILÁQUA. Clóvis. Criminologia e Direito. Edição Histórica de Março de 1983. Editora Rio. Rio de Janeiro. 1983.
BRUNO. Aníbal. Perigosidade Criminal e Medidas de Segurança. Editora Rio. Rio de Janeiro. 1977.
FERRI. Enrico. Discurso de defesa: Defesas Penais. 4ª Edição. Coimbra. Armênio Amado Editor.
HULSMAN. Louk. CELIS. Jcqueline Bernat de Celis. Penas Perdidas. O Sistema Penal em Questão. 1ª Edição. LUAM editora. Rio de Janeiro. 1993.
LARAIA. Roque de Barros. Cultura. Um conceito Antropológico.11ª Edição. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 1997.
LOMBROSO. Cesare. O homem Criminoso – L´Homme Criminel – Editora Rio. Rio de Janeiro.1983.



notas:
[1] Trabalho desenvolvido para obtenção de nota relativa à disciplina “Criminologia” ministrada pela professora Carolina Pecegueiro – Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Curso de Direito.
[2] Aluno do segundo período do Curso de direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco UNDB.
[3] O Centro de Reeducação e Inclusão Social de Mulheres Apenadas – CRISMA – funciona no bairro do Olho D´água (São Luís – MA) e tem capacidade para abrigar 80 internas. O CRISMA, assim que inaugurado, foi de imediato ocupado pelas 68 internas que se encontravam no pavilhão feminino da penitenciária agrícola de pedrinhas.
[4] Os dados utilizados para explicitar a seletividade do sistema penal brasileiro tomando por base o perfil sócio-econômico da população carcerária maranhense aqui expostos provém de duas fontes – os dados fornecidos pelo InfoPen e os obtidos em nosso estudo de campo – os primeiros de credibilidade inquestionável, os segundos obtidos por meio de entrevistas realizadas no dia sete do mês de Maio de 2008. Perqueriu-se um grupo de 20 mulheres encarceradas, e para cada uma delas, preenchia-se um formulário no qual constavam os seguintes campos: nome; nacionalidade; faixa etária / idade exata; casado? (sim/não); tem filhos (sim/não/quantos?); cor de pele/etnia; grau de instrução; tinha emprego ou trabalhava de maneira autônoma? (sim/não); renda mensal; crimes tentados ou consumados; ré primária ou reincidente?; poderia pagar um advogado?(sim/não).
[5] BARATTA. Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal.Introdução á Sociologia do Direito Penal. Editora Revan. Instituto Carioca de Criminologia. 3ª Edição. Rio de Janeiro. 2007. Pg29.
[6] LOMBROSO. Cesare. O homem Criminoso – L´Homme Criminel – Editora Rio. Rio de Janeiro.1983.
[7] BEVILÁQUA. Clóvis. Criminologia e Direito. Edição Histórica de Março de 1983. Editora Rio.Pg.83.
[8] FERRI. Enrico. Discurso de defesa:Defesas Penais. 4ª Edição. Coimbra. Armênio Amado Editor.
[9] LARAIA. Roque de Barros. Cultura. Um conceito Antropológico.11ª Edição. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 1997. Pg.45
[10] BRUNO. Aníbal. Perigosidade Criminal e Medidas de Segurança. Editora Rio. Rio de Janeiro. 1977. Pg.11.
[11] HULSMAN. Louk. CELIS. Jcqueline Bernat de Celis. Penas Perdidas. O Sistema Penal em Questão. 1ª Edição. LUAM editora. Rio de Janeiro. 1993. Pg. 88.
[12] Na ocasião da inauguração, o então secretário de justiça e cidadania José Magno Moraes de Sousa declarou que o CRISMA “Foi um espaço cuidadosamente planejado, construído e adaptado ao universo carcerário feminino e que vem resgatar a cidadania das apenadas”.
[13] ANDRADE. Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo X Cidadania Mínima. Códigos da Violência na Era da Globalização. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre. 2003. Pg. 102.